“A novela “Salve Jorge” me trouxe à lembrança um episódio da juventude, que poderia ter-me levado a sofrer a infelicidade das meninas iludidas, que vão para a Europa, imaginando que se tornarão estrelas, quando, no final, tornam-se escravas da exploração sexual.
Hoje faz 60 anos (1952) que publiquei meu primeiro artigo no “Jornal do Commércio” do Recife, onde comecei a carreira de cronista. O assunto era uma reunião de famosos poetas brasileiros já falecidos, que voltavam a este mundo e começavam a discutir sobre poesia e literatura. Não sei onde guardei o recorte do jornal, mas sei que ele ainda existe, perdido em alguma pasta, no meio da minha enorme papelada. Continuei escrevendo nesse jornal por algum tempo e mesmo quando vim morar no RJ, em 1954, recebia os recortes e até algum dinheiro, que foi de ajuda em meu início de vida, como secretária no RJ.
Anos mais tarde, escrevi um artigo que faria parte do meu primeiro livro – “Cubos de Gelo” – o qual vou transcrever abaixo:
Em 1953, quando trabalhava na SINGER do Recife, como Secretária do Superintendente, Mr. Denchfield, aconteceu-me um fato interessante. Eu tinha um metro e sessenta e cinco centímetros de altura, cabelos louros, manequim 42, um corpo bem torneado e me vestia com simplicidade e bom gosto. Falava Inglês fluentemente, escrevia semanalmente no Suplemento Feminino do JORNAL DO COMMÉRCIO, e isso me dava um certo prestígio entre os amigos e colegas de trabalho.
Um dia, fui procurada por um casal de boa aparência, que dizia estar recrutando moças brasileiras com Inglês fluente para trabalhar no Departamento Latino da BBC de Londres. Conversamos em Inglês durante alguns minutos e combinamos encontro no restaurante LEITE, o melhor da cidade. Lá iríamos acertar a minha ida a Londres, com um salário três vezes maior do que o da SINGER.
Quando saí do escritório naquela tarde, meu coração estava agitado como um pernambucano dançando frevo. Durante muitos anos havia acalentado o sonho de conhecer a Inglaterra. Visitar a Baker Street, de Sherlock Holmes, ver de perto a Rainha Elizabeth II recém coroada! Era bom demais para ser verdade! Chegando em casa contei a novidade às colegas do apartamento onde morávamos e todas vibraram com a notícia, passando imediatamente a colaborar em minha toalete. Enrolaram-me os cabelos, pintaram-me as unhas, maquilaram-me com esmero e fiquei linda, num vestido de tafetá preto, tomara-que-caia! Disseram que eu estava a cara da Grace Kelly, a atriz da moda.
Sentia-me tão importante que, chegando ao LEITE, sentei na melhor mesa e pedi um drinque de Martini com uma cereja no palito, como via as artistas de cinema fazerem. Tornei o drinque… vagarosamente. 0 tempo foi passando e, vendo a impaciência do garçom, pedi também uma lagosta grelhada com purê de batatas. Duas horas depois o casal não havia aparecido, paguei o jantar e fui para o apartamento onde morava com as três amigas. Felizmente, o dito ficava a uma quadra dali. Eu estava completamente arrasada e foi essa a maior decepção da minha vida (Ainda não conhecia aquele que seria o meu versículo chave de vida: Rom. 8:28).
Meses depois, apareceu num jornal do Rio o retrato de um casal que fazia o tráfico de escravas brancas para as boates europeias. Fiquei tão envergonhada, que não tive coragem de mostrar aquela foto às colegas de apartamento. Deus, em sua infinita misericórdia, tinha me livrado de uma cilada. “… (Ele) nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor” (Efésios 1:4) e não havia permitido que eu me tornasse uma garota de programa, no exterior, isto é, uma prostituta importada.
Anos mais tarde, fui a Londres, em companhia do marido e da filha Margarete. O diário desta viagem à Europa está em meu livrinho CUBOS DE GELO. Ali estava diante de mim a misteriosa cidade. Velha, feia, brumosa e bolorenta, não me agradou de modo algum. Seus habitantes tinham uma cara de poucos amigos e pareciam estar nos mandando embora a toda pressa. Davam informações de má vontade e o tempo todo ficavam dizendo: Thank you! Os únicos sorrisos que lá encontramos foram o da Rainha Elizabeth II para a nossa filha Margarete e o do Mr. Scarles, Gerente da Mappin & Webb, na Queen Victoria Street, o qual havia sido meu chefe na Loja M.W. do Rio. Ficou muito feliz ao ver-nos, matando, assim, a saudade da língua portuguesa.
Devia ser duro para um inglês bem humorado como o Mr. Scarles morar tantos anos no Brasil e em seguida voltar para Londres! Graças a Deus aquele emprego na BBC fora de mentirinha e eu não tinha ido morar naquela cidade tão sinistra. Sempre que sonhava com Londres era em forma de pesadelo, perdida num daqueles abismos do Metrô e acordava gritando: Help! Help! Help!”
Mas, foi um help de São Jorge? Não; foi do anjo da guarda a quem o Senhor me havia confiado”.
Mary Schultze, 02/11/2012 – marybiblia.com