A gestação de um Deus é processo que percorre um tempo de longa duração. Gestar um Deus é trabalho para dezenas de gerações, é esforço intelectual de sucessivas gerações. Mas, o que leva uma sociedade a gestar um novo Deus? A necessidade de um novo Deus se faz presente quando o Deus anterior dessa sociedade sucumbe paulatinamente à chegada de novos tempos. Para a sociedade cristã européia pós igreja cristã primitiva, os novos tempos chegaram quando ela considerou ser necessário afastar o Cristianismo católico em formação, da religião judaica. Todos sabem que o Cristianismo tem suas raízes fincadas no Judaísmo, que os cristãos são também herdeiros das promessas que o Deus Uno anterior fizera ao povo judeu na pessoa do patriarca Abraão. (Abençoarei os que te abençoarem, amaldiçoarei os que te amaldiçoarem. Por ti serão benditos todos os clãs da terra. Gênesis 12:3) Porém, pouco a pouco, os novos cristãos foram se afastando das tradições judaicas – o sábado como dia sagrado, abstinência de alimentos impuros, proibição da veneração de imagens etc –, até que, finalmente, sentiram a urgência da gestação de um novo Deus, diferente do Deus Uno do povo israelita e que estivesse em melhor sintonia com as novas mentalidades aportadas ao Cristianismo.
Os novos cristãos, agora inimigos do primeiro Cristianismo de tradições judaicas, precisavam se desligar do Deus dos hebreus, Iahweh. Não estavam satisfeitos em apenas abandonar o sábado, as leis que proibiam o consumo de animais que Deus declarou imundos, a proibição da veneração de imagens, etc. Os novos cristãos, oriundos do paganismo, mesmo tendo criados novos ídolos para substituir os antigos e os introduzido dentro dos templos, ainda não se sentiam satisfeitos. Quebraram o Segundo Mandamento e começaram a fazer imagens de escultura; quebraram o Quarto e substituíram o sábado pelo domingo; dividiram outros e alteraram completamente a Lei do Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Apesar das tantas alterações, não ainda não se deram por satisfeitos. Precisavam gestar um novo Deus, mais em sintonia com a nova realidade idolátrica. Eles não se sentiam confortáveis diante do antigo Deus Uno, que é uma repreensão contra a idolatria, assim com um servo do antigo também não se sente bem diante do novo Deus Triuno.
A gestação de um novo Deus para os cristãos começou a dar seus primeiros passos quando Constantino, um imperador romano pagão declarou admiração pelo Cristianismo, se aproximou dele e começou a usar os cristãos para os seus objetivos políticos. Não era saudável para o grande Império Romano ter sua população dividida entre seguidores de Cristo perseguidos e pagãos no pleno uso da liberdade religiosa. Para acabar com a crise religiosa pagãos versus cristãos, a estes foi estendida a liberdade religiosa no ano 313 pelo famoso Édito de Milão. Os cristãos, agora livres, começaram a gozar das benesses do Estado Romano Imperial juntamente com os pagãos. Como não eram mais perseguidos e ser cristão abria muitas portas e dava status, logo, o número deles aumentou e suplantou o de praticantes da antiga religião politeísta dos romanos. Sendo agora livres e se tornando maioria no Império, outro imperador, Teodósio, declarou o Cristianismo que se tornou católico romano, religião oficial do Império proibindo o exercício de qualquer outro culto religioso pelos cidadãos romanos. De repente, de perseguidos, os cristãos, agora, em sua maioria católicos romanos, passaram a perseguir o antigo inimigo pagão.
Constantino precisava dos cristãos unidos em torno de uma só crença, o que não acontecia em seu tempo, já que havia dois cristianismos, o católico e o ariano. Procurando promover a unidade dos cristãos, o Imperador convocou o famoso Concílio de Nicéia no ano 325, no qual as duas concepções cristãs entraram em choque. O Cristianismo católico que saiu vitorioso no embate, definiu a pessoa de Cristo de uma maneira que abriu as portas para que o dogma trinitariano desse os primeiros passos na estrada de sua longa gestação. De um Cristo Filho de Deus, segundo a Bíblia e Nicéia, a pessoa de Jesus foi ganhando exaltação até se tornar Deus como o Pai. De um espírito que procedia do Pai, segundo apenas a Bíblia, a natureza do espírito santo foi sendo modificada até que ele se tornou o Espírito Santo, igualmente tão Deus quanto o Pai. Para os novos cristãos convertidos do paganismo politeísta para o Cristianismo católico dos novos tempos, muitas vezes pela violência, agora como antes, apenas um Deus, o de Abraão, Isaque e Jacó, não era o bastante. Quem sabe três, fosse o ideal. O antigo inimigo pagão nunca foi derrotado completamente. Pelos antigos inimigos do Deus de Israel um novo Deus foi gestado. Esse novo Deus precisava receber uma identificação coerente com sua principal característica: a impessoalidade. Ele não poderia ser chamado de Pai, esse termo pertence ao Deus de Israel. Ele não poderia ser chamado de Filho, esse termo pertence ao Filho do Deus de Israel, Jesus Cristo. Ele também não poderia ser chamado de espírito santo, essa expressão pertence ao espírito do Deus dos Judeus. O novo Deus impessoal precisava de um nome que fosse capaz de transmitir a nova ideia do Deus gestado: um Deus em três pessoas. Trindade, eis o nome escolhido por Tertuliano, teólogo do Cristianismo católico para o novo Deus. Depois de séculos sendo gestado, os novos cristãos afastados do Verdadeiro puderam finalmente fazer sua declaração de adoração ao novo Deus: “Para nós há um só Deus (…) uma unidade de três pessoas coeternas Nisto Cremos, Casa Publicadora Brasileira, Tatuí, SP, 1997, pág. 31 ”. Essa unidade impessoal de três pessoas coeternas chama-se Deus Triúno, ou, simplesmente, Trindade. Foi assim que nasceu o Deus do Cristianismo católico romano e que se tornou o Deus da maioria das igrejas cristãs parcialmente reformadas.
Declaração de crença no antigo Deus do povo judeu:
“Porque, ainda que haja também alguns que se chamem deuses, quer no céu quer na terra (como há muitos deuses e muitos senhores), todavia para nós há um só Deus, o Pai, de quem é tudo e para quem nós vivemos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós por ele.” I Coríntios 8:5 e 6
Declaração de crença no novo Deus gestado pelo Cristianismo católico romano:
“Quem quer salvar-se, deve, antes de tudo, professar a fé católica (…) A fé católica consiste em venerar a um só Deus na Trindade, e a Trindade na unidade sem confundir as pessoas, nem separar as substâncias. (…) E nesta Trindade nada existe de anterior ou posterior, nada de maior ou menor; mas todas as três pessoas são coeternas e iguais, umas às outras; de sorte que, em tudo, como acima ficou dito, deve ser venerada a unidade na Trindade, e a Trindade na unidade. Quem quer portanto salvar-se, assim deve crer a respeito da Santíssima Trindade.” MARTINS, Frei Leopoldo Pires. Catecismo Romano. Petrópolis: Editora Vozes. 1951. p. 67 e 69
Elpídio da Cruz Silva