DO CORTE DA CANA PARA O DOUTORADO (EXEMPLO DE VIDA)

CANA
Ex-cortador de cana se formou e defendeu tese sobre o trabalho penoso dos canaviais; hoje dá aulas na PUC

MÔNICA MANIR – O Estado de S.Paulo

José Agnaldo não precisa mais madrugar no eito. Seu talhão hoje é uma sala de aula na PUC de São Paulo, onde ensina saúde do trabalhador pelo departamento de Psicologia Social. Nem por isso ele se distancia do mundo canavieiro. Não é de rechaçar o passado. Dobra a atenção, isto sim, para as condições de vida do cortador de cana-de-açúcar brasileiro, especialmente neste tempo de colheita, quando só as usinas paulistas absorvem cerca de 120 mil braços, a maioria migrantes do Nordeste.

O professor da PUC é migrante do extremo oeste do Estado. Nasceu há 43 anos em Maracaí, a 463 km da capital. A cidade já girava em torno da cultura da cana quando o pai mecânico ficou entre as ferragens de um caminhão acidentado, à beira da Raposo Tavares. A mãe, então sem estudo, pegou do podão e foi pra lida. Atrás vieram o filho mais velho, depois a irmã, José Agnaldo e o caçula. “Era fazer 13 anos e o destino estava traçado”, diz o professor.

Mirrado, ele penava para tirar as 6 toneladas do dia. Esperava o fiscal de campo distribuir suas 5 linhas paralelas de cana – o eito – e abraçava o primeiro feixe. Então dava golpes no pé da planta, outros na ponta, carregava a cana até a leira e partia para novo tanto. Um convite à fadiga e à LER (lesão por esforço repetitivo): “Durante o sono, o braço reproduzia o corte em baixo e o corte em cima, machucando quem dividia a cama com a gente”.

Foram dez anos nisso, até amadurecer a ideia de voltar ao ginásio. Sentado no garrafão de água, a roupa fuliginosa borrando o caderno, ele fazia as lições do supletivo na hora do almoço. Concluído o segundo grau, percebeu que continuava boia-fria. Um passo adiante foi insistir numa vaga no escritório da usina, na qual ficou um ano. Outro, mais largo, era ir pra São Paulo.

Com a promessa feita à mãe de guardar o dinheiro da volta, alugou uma cama numa pensão e, em meses como atendente da Casas Bahia, recuperou o valor da passagem e investiu nos estudos. Por meio de d. Luciano Mendes de Almeida, conseguiu uma bolsa integral na Universidade São Judas Tadeu para fazer psicologia. Por meio de d. Cláudio Hummes, a oportunidade de fazer mestrado na PUC, focando os moradores de rua do centro. Um voluntariado de seis meses em Berlim o levou à proficiência para o exame em alemão. O doutorado na USP o conduziu ao itinerário dos canavieiros pela via da psicologia do trabalho.

A tese, que virou livro (Do Trabalho Penoso à Dignidade do Trabalho, Editora Ideias & Letras), se fincou nos canaviais de Cosmópolis, perto de Campinas. Ali a pesagem – um nó no processo – é controlada pelo sindicato.

“É muito difícil fazer o cálculo da produção de um cortador de cana porque ele corta por metro, mas recebe por peso”, explica José Agnaldo. Se houve um ganho nesse sentido em algumas usinas, houve a perda quanto às metas ambiciosas do negócio. Hoje o boia-fria corta 12 toneladas, quando não 20, por dia. São 100 mil movimentos repetitivos do nascer ao pôr do sol. Em 15 anos o trabalhador fica aleijado – expressão de José Agnaldo – por causa das dores nas costas, dos problemas respiratórios e do desgaste psicológico. Raramente dá para chegar aos 35 anos de contribuição ao INSS. “Isso quando não morre por exaustão”, completa.

E ainda tem o nexo causal do vício. Nos levantamentos de campo para o doutorado, ele registrou infindos casos de alcoolismo, da tal pinguinha antes de chegar em casa aos tais fins de semana de bebedeira. “O alcoolismo está previsto como doença laboral, quando encarado como mecanismo de defesa”, destaca. O crack, que invade as plantações como erva daninha, vai na mesma direção.

A mecanização surge como promessa de liberar o cortador desse fardo, mas ela ainda não consegue substituí-lo. Uma porque o solo brasileiro tem muito declive, o que não raro inviabiliza a entrada das colheitadeiras. Outra porque a máquina não corta rente ao chão. Fica o toco, de onde ainda se pode extrair sacarose.

“Mas antes de decretar o fim para preservar o sujeito, você tem que dar condição para ele preservar a própria vida”, adverte o professor. “Há um exército de reserva que aprendeu a cortar cana num único dia e faz isso há anos. O que vai ser dele?”

A liberação desses trabalhadores exige no paralelo um projeto político de qualificação e absorção dessa mão de obra. E o salto para além da sociedade meritrocrática, baseada no self-made man. “É preciso oferecer e reoferecer oportunidades. Saiu do canavial um doutor. Podem sair outros tantos.”
FONTE:http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,do-corte-da-cana-para-o-doutorado-,1035716,0.htm

“E CONHECEREIS A VERDADE E A VERDADE VOS LIBERTARÁ”. JOÃO 8:32.
PALAVRAS MAGISTRAIS DE CRISTO, O FILHO ÚNICO DO DEUS ÚNICO E VERDADEIRO, O PAI (JOÃO 17:3).

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